Combate às queimadas e o agronegócio

Manifesto Coletivo - Emergência Climática
Nota Pública - nº 01/2024

             

            

               Combate às queimadas e o agronegócio

Ana Carolina Trindade Guilhen

Bióloga, mestre e doutora em clínica médica pela UNICAMP e MBA em Gestão Ambiental pela Poli-USP.


Diante da maior crise climática, o maior número de queimadas registrado até o momento, foram 5,65 milhões de hectares (ha) registrados somente no mês agosto deste ano, segundo dados do MapBiomas¹, área comparável ao território do Estado da Paraíba ou de um país como a Croácia. No total, de janeiro a agosto de 2024,  foram registrados 11.396.079 ha.  O número total de brigadistas federais em todo o Brasil, responsáveis por combater os incêndios, são 3.299 vinculados ao Ibama e ICMBio (Instituto Chico Mendes e Conservação da Biodiversidade). É evidente que diante do número expressivo de área queimada, o número de brigadistas é insuficiente, para não dizer irrisório.

    Relatos dos brigadistas, segundo o jornal da BBC, estimam jornadas de mais de 10 horas de trabalho, labaredas de até 20 metros, ventos de até 60 km/h e temperaturas de até 1000˚C durante os combates aos incêndios. Além do fato real do risco de vida, o que os brigadistas recebem desse incalculável trabalho seria um salário mínimo, adicional de insalubridade, auxílio transporte, auxílio pré-escola (para quem tem filhos) e um seguro de vida de 20 mil reais. Uellinton Lopes dos Santos, de 39 anos, brigadista, foi vítima dos incêndios em Porto Velho (RO), morreu carbonizado  e foi  "homenageado" por Lula como heroi. A pergunta que fica é: Quanto vale a sua vida?

Em Ribeirão Preto, uma das áreas mais atingidas do Estado de SP por incêndios criminosos, teve a ajuda da força aérea brasileira (FAB)  que empregou seis aeronaves (um avião KC-390 da FAB, três helicópteros do EB e dois helicópteros da MB), 34 viaturas e 559 militares, sob a demanda do Governo do Estado.  É imprescindível que a FAB atue no combate aos focos de incêndios e que haja uma força tarefa entre o governo federal e estadual.  Um outro obstáculo a ser enfrentado é a restrição orçamentária, promovida pelo plano de austeridade de Haddad com sua meta de déficit zero. Já o ministro Flávio Dino, por meio de medidas provisórias, planeja reservas emergenciais no combate à crise climática, sem cômputos para o teto ou metas fiscais. 

  Outros incentivos serão necessários para além do combate aos incêndios e da penalização dos responsáveis, como a urgência no aumento de áreas de preservação e o incentivo ao reflorestamento dessas áreas. Tendo em vista que o Brasil se comprometeu  a restaurar 12 milhões de hectares até 2030, para atingir essa meta, o país precisará de um montante de sementes que se estima entre 3,6 a 15,6 mil toneladas, o que poderá gerar empregos a milhares de coletores de sementes nativas, gerando renda estimada de US$ 34 a 146 milhões².  Atualmente, porém, o ICMS é o imposto que mais onera a produção de sementes nativas, podendo variar de 17% a 21% dependendo do estado. Para reverter o possível desestímulo ao comércio de sementes, a PEC 45/2019 promulgada em 2023, substituirá o  ICMS  e o ISS da comercialização de sementes nativas pelo IBS (imposto sobre bens e serviços) , porém só entrará em vigor em 2033, o que pode ser tarde demais. O ideal para os produtores de sementes, com a finalidade de restauração dos ecossistemas, seria a aprovação de mecanismos específicos de isenção desses impostos pelo legislativo brasileiro, como é feito na cadeia produtiva de soja e de outras commodities que lucram bilhões com isenções de impostos enquanto esgotam o solo e modificam a área de uso do solo, o que nos autoriza concluir a importância do agronegócio comparado não somente à preservação do meio ambiente, mas também suas consequências, a continuidade saudável de nossas vidas.

  A soja ocupa hoje uma longa trajetória de ciclos econômicos de isenções fiscais (insumos usados na produção), grandes concentrações de renda e terras, enormes impactos ambientais, papel ocupado anteriormente pelas monoculturas de cana-de-açúcar, café, borracha e cacau. Resultado indireto desses privilégios cedidos pelo Estado é o impacto no aumento dos preços de áreas agricultáveis, diminuindo o acesso aos pequenos agricultores que deixam de produzir alimentos básicos como feijão, arroz, frutas e legumes, enquanto a produção de soja é voltada para a fabricação de ração para animais, óleos comestíveis e como base de alimentos ultraprocessados. Em 2023 a área total destinada ao cultivo de soja chega a 40 milhões de hectares³.

 A isenção de PIS/Pasep e Cofins na cadeia produtiva de soja pode ser observada na tabela abaixo:


A totalidade do circuito da cadeia produtiva da soja, desde a aquisição de insumos, adubo, agrotóxicos e sementes, passando pelo óleo alimentar, farelo e biodiesel até sua exportação é desonerada em 100% das alíquotas de PIS/Pasep, Cofins e do IPI. O total da desoneração na cadeia produtiva da soja, incluindo o crédito presumido, é de R$ 56,81 bilhões, o que equivale a 15% do seu faturamento, que é estimado em 400 bilhões. Desse modo, renúncia fiscal na cadeia produtiva da soja é quase o dobro da renúncia fiscal estimada pelo Governo Federal para toda a cesta básica, calculada em R$ 30 bilhões4.

    Economistas irão tentar justificar incansavelmente que esse grande setor do agronegócio representa o crescimento econômico do país, já que o setor do agronegócio no Brasil representa 21,5 % do PIB em 20245. Mas afinal, em que exatamente o PIB influencia na economia nacional?

 O maior Estado produtor de soja e milho do país é Mato Grosso, respondendo por 28,5% do total nacional em uma área de 11,82 milhões de hectares apenas de soja e 7,4 milhões de hectares de milho (IMEA, 2023) e também o maior produtor de carne bovina com 84 milhões de toneladas (IMEA, 2023)6. O PIB do estado chegou a R$ 178,6 bilhões em 2020, valor 220% maior, em termos nominais, que em 2010 (IBGE, 2010/20). Contudo, os indicadores sociais do Estado de Mato Grosso, a fome e a pobreza voltaram a crescer no estado.

Em agosto de 2022, Mato Grosso tinha 291,7 mil famílias registradas na plataforma de assistência social do Governo Federal, o Cadastro Único (CAD Único), o que equivale a 1.017.154 pessoas, ou quase um terço da população estadual. O II VIGISAN informou que mais de 32% da população de Mato Grosso vivia em situação de insegurança alimentar grave ou moderada, sendo que mais de 17% em situação grave, o que corresponde a mais de 650 mil pessoas. Como se sabe o agronegócio não está voltado à alimentação de pessoas, já que a soja, como exemplo, é item quase exclusivamente dedicado à produção de ração animal, produz poucos postos de trabalho e o produto final possui pouco valor agregado, um típico produto de economia colonial na divisão internacional do trabalho.

Diante dos dados apresentados a quem interessa o "progresso" mensurado a partir do PIB, às custas dos dados alarmantes de desmatamento e fome, não apenas no Estado de Mato Grosso, mas em todo o país, que investe massivamente no agronegócio - um modelo econômico herdado dos tempos coloniais?


Referências Bibliográficas

1 https://brasil.mapbiomas.org/2024/09/13/agosto-responde-por-quase-metade-da-area-queimada-no-brasil-em-2024/

2 Celentano D., Santos D., Malta E., et al (2024). Tributação de cadeia produtiva de sementes nativas para a restauração de ecossistemas no Brasil.  Relatório Rendário

3 Campos A. (2023). O custo da soja para o Brasil: renúncias fiscais,subsídios e isenções da cadeia produtiva. Relatório WWF.

Receita federal, Centro de Estudos Tributários e Aduaneiros.  Disponível em https://www.gov.br/ receitafederal/pt-br/centrais-deconteudo/publicacoes/relatorios/ renuncia/gastos-tributarios-ploa/ dgt-ploa-2022-base-conceitual

CEPEA . Disponível em https://www.cepea.esalq.usp.br/br/pib-do-agronegocio-brasileiro.aspx

Disponível em https://www.imea.com.br/




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