Viabilidade da Agroecologia

Manifesto Coletivo - Emergência Climática

Nota Pública - nº 03/2024

Viabilidade da Agroecologia

Ana Carolina Trindade Guilhen

Bióloga, mestre e doutora em clínica médica pela UNICAMP e MBA em Gestão Ambiental pela Poli-USP.

Marina Santiago

Geógrafa pela UFMG, graduanda em Administração Pública pela Fundação João Pinheiro.


O Brasil é um país rico em biodiversidade e com uma enorme capacidade agrícola, mas que infelizmente sua produção está focada em monocultura em grandes latifúndios sob o uso indiscriminado de agrotóxicos que devastam nosso meio ambiente. Adotar sistemas de cultivo que respeitem nossa biodiversidade da fauna e flora é um caminho que nos trará grandes benefícios ambientais, como a recuperação de 32,5% do território brasileiro, atualmente ocupados pela agropecuária no Brasil.  Tendo em vista que o país já perdeu um terço de sua cobertura vegetal nativa, o que agrava os impactos das mudanças climáticas, é urgente a recuperação das áreas destruídas e o estabelecimento de um novo sistema de cultivo baseado na agroecologia.

  1. Silvicultura de espécies nativas: plantio e cultivo de árvores nativas para uso econômico, podendo ser cultivadas com espécies exóticas.

  2. Sistemas Agroflorestais (SAFs): uso e ocupação do solo em que árvores são manejadas em associação com culturas agrícolas e/ou forrageiras.

  3. Integração Lavoura-Pecuária-Floresta (ILPF): estratégia de produção sustentável que integra atividades agrícolas, pecuárias e florestais, também conhecida como sistemas silvipastoris, buscando efeitos sinérgicos entre os componentes e otimizando aumentos de produtividade, como a conservação de recursos naturais.

A agroecologia, para além da conservação da biodiversidade, também contribui para o sequestro de carbono, a recuperação do solo e a regulação da qualidade da água, promovendo um benefício 45% maior em comparação à agricultura convencional para a preservação da fauna e flora.

Apesar de o termo agroecologia ser relativamente novo, é importante destacar que essa metodologia de cultivo remete a práticas ancestrais e desenvolvidas por inúmeras comunidades tradicionais em todo o mundo, com especial expressão nos trópicos. Dentre outros nomes possíveis, vale mencionar: roça de quilombo e roça indígena (Bispo dos Santos, 2023).

Estudos sobre o cultivo de SAFs na Mata Atlântica indicam que essas práticas promovem 65% de benefícios para a biodiversidade associados a serviços ecossistêmicos, em comparação aos cultivos tradicionais. Os serviços ecossistêmicos são caracterizados como:

  • Serviços de suporte:  serviços necessários para a produção de todos os outros serviços dos ecossistemas como formação do solo, ciclo de nutrientes e produção primária. 

  • Serviços de aprovisionamento: produtos obtidos dos ecossistemas como comida, água potável, combustível, fibras, compostos bioquímicos e recursos genéticos.

  • Serviços de regulação: benefícios obtidos através da regulação dos processos dos ecossistemas como regulação do clima, controle de doenças e purificação da água.o

  • Serviços culturais: benefícios não materiais obtidos dos ecossistemas como cultos espirituais ou religiosos, turism, herança cultural e espaço educacional.

Mesmo diante de dados significativos, hoje no Brasil temos cerca de 144 modelos experimentais de SAFs que incluem projetos de natureza coletiva e políticas públicas. Deste total, 30% foi implementado  pela Embrapa  e pouco mais de 16% pelos governos estaduais. Considerando essa diversidade de modelos experimentais, temos um total de 8021 registros de SAFs  segundo o MAPSAF.

Fig 1. Dados coletados de maio de 2017 até janeiro de 2024. O número total contabilizado de SAFs é de 8021, sendo a maior área de concentração no sudeste do Brasil.

Os cultivos agroecológicos contribuem para  garantir a segurança alimentar e nutricional das famílias produtoras e da diversificada alimentação da população brasileira. Para além da regeneração florestal deste tipo de cultivo, políticas públicas de incentivo são necessárias para maior adesão deste modelo. Pagamentos por serviços ambientais (PSA) foi um modelo criado em 2008 pelo Estado do Espírito Santo pela  lei estadual 9.864/2008. O apoio financeiro inclui aquisição de insumos necessários à implementação de florestas (mudas, adubo e cercamento, entre outros) e a longo prazo, compensação financeira pelas boas práticas e recuperação da área, considerados serviços ecossistêmicos.

Os maiores desafios enfrentados pelos produtores residem na crença de que o aumento das áreas reflorestadas resultaria em perda de produção. A falta de conhecimento  de que a restauração implica numa melhor produtividade, a ausência de assistência técnica de qualidade, além do alto custo na implementação do projeto, as incertezas sobre o retorno financeiro (que costuma ser a longo prazo), a insegurança jurídica (regras pouco claras quanto às espécies plantadas, espaçamento, manejo de espécies nativas e outras definições técnicas para restauração), a escassez de mão de obra qualificada, a curta duração dos programas e projetos governamentais, e a dificuldade de integração entre eles, são os principais desafios para a expansão da restauração florestal.

Além disso, o manejo das SAFs requer um amplo conhecimento técnico sobre as características agronômicas e ecológicas das múltiplas espécies, constituindo uma questão central na expansão de sua produtividade.

Porém, ainda mais determinante para a não implementação de SAFs no Brasil, e que inclusive ameaça a permanência dos atuais sistemas, é a questão fundiária. Enquanto herança colonial não superada, a ausência de um reforma agrária verdadeira e profunda permite a manutenção da concentração de terras na forma de latifúndio agrário-exportador, que é o principal desafio ao enfrentamento às mudanças climáticas no Brasil. Soma-se a essa questão a implementação da indústria neoextrativista, uma vez que a economia é totalmente dependente do comércio de commodities como soja, milho, minério, petróleo.

De acordo com notícia publicada pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), no acumulado do ano de 2024 até abril, em relação a igual período em 2023, o volume exportado das commodities cresceu 18,7% e o das não commodities recuou 5,2%. A indústria extrativista representa 61,1% do volume de crescimento das exportações, e o setor agropecuário registrou aumento de 7,7%, liderado pela soja, cuja participação é de 20,6% nas exportações totais e aumento em Kg de 2,5%.

Apesar de o setor agropecuário representar um aumento percentual menor do que o setor extrativista, em termos de uso da terra a sua expansão é muito superior, decorrendo em uma complexidade de conflitos e de técnicas criminosas de abertura de áreas de expansão, como os incêndios florestais que impactaram todo o país, principalmente durante o inverno de 2024. Dados do MapBiomas sobre a evolução do uso da terra no Brasil, de 1985 a 2023, evidenciam que a área de pastagem do país cresceu 79%, enquanto a área de agricultura cresceu 3,3 vezes. Sendo assim, o uso da terra no Brasil é uma questão central no que tange às possibilidades de se estabelecer sistemas agroflorestais, bem como uma outra economia.


Figura 2: Evolução anual da cobertura e uso da terra (1985-2023)

Fonte: Mapbiomas, 2024. Disponível em: https://brasil.mapbiomas.org/infograficos/. Acesso em 24/10/2024

Um estudo feito pela Embrapa em Minas Gerais sobre sistemas ILPF encontrou benefícios ao produtor e meio ambiente como: melhoria das condições físico-químicas e biológicas do solo, aumentando assim a ciclagem e eficiência na utilização dos nutrientes; redução de custos de produção de atividades agrícolas e pecuárias; redução na abertura de novas áreas de cultivo, diversificando e estabilizando a renda da propriedade rural. O estudo também aponta desafios a serem enfrentados para a implementação desses sistemas, como a falta de investimento público e a adoção de tecnologias adequadas para o cultivo. O potencial da ILPF, se bem empregado, resolveria problemas sociais, econômicos e ambientais, o que apresentaremos na segunda parte que compõe este texto


Observações: ¹“No quilombo não existe ecologia, existe a roça de quilombo, a roça de aldeia, a roça do ribeirinho, a roça do marisqueiro, a roça do pescador, a roça da quebradeira de coco. Por que a academia usa a palavra ecologia e não agricultura quilombola? Por que não usa roça indígena? As universidades são fábricas de transformar os saberes em mercadoria e a agricultura quilombola não é mercadoria” (Bispo dos Santos, Antônio. A terra dá, a terra quer. São Paulo: Ubu Editora/ PISEAGRAMA, 2023, p. 100). Fonte: https://brasil.mapbiomas.org/destaques/ Relatório WRI, 2021: Reflorestamento com espécies nativas: estudos de casos, viabilidade econômica e benefícios ambientais. SANTOS, P. Z. F.; CROUZEILLES, R.; SANSEVERO, J. B. B. Can agroforestry systems enhance biodiversity and ecosystem service provision in agricultural landscapes? A meta-analysis for the Brazilian Atlantic Forest. Forest Ecology and Management, v. 433, p.140-145, nov. 2019. Disponível em: https://doi.org/10.1016/j.oreco.2018.10.064. Wezel, A. et al.Agroecology as a science, a movement and a practice. A review. Agronomy for sustainable Relatório WRI, 2021: Reflorestamento com espécies nativas: estudos de casos, viabilidade econômica e benefícios ambientais BENINI, R. D. M.; SOSSAI, M. F.; PADOVEZI, A.; MATSUMOTO, M. H. Plano estratégico da cadeia da restauração florestal: o caso do Espírito Santo. 2016. https://portalibre.fgv.br/noticias/balanca-comercial-exportacoes-de-commodities-da-industria-de-transformacao Acesso em 24/10/2024. Relatório EMBRAPA, 2015.Sistema Agroflorestais: A Agropecuária Sustentável.

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